Sobre o Prospecto
por Cássio Lucas
Após alguns anos de movimentação na revigorada cena jazz de Porto Alegre, a Marmota lança seu primeiro álbum, Prospecto. O quarteto inicia nova fase, sustentada pelo amadurecimento desenvolvido nos últimos anos, que se traduz nas primeiras composições originais de Moser e Bittencourt. A Marmota arrasta ao subterrâneo as sonoridades de Hermeto Pascoal e Aaron Parks, da balada americana e da batucada brasileira, do moderno clássico e do pós-moderno contemporâneo, e das profundezas destes entrecruzamentos desencava um prospecto.
A passagem por dois standards - Nardis (Davis) e If I should lose you (Rainger) - demonstra a capacidade (decisiva para o jazz) de manipulação criativa de influências. De reformulação do cânone do gênero. Nesse sentido, prospectar é retomar. Os anos 30 do swing dançante e os 50 da modernização em jazz cool e modal são atualizados em arranjos idiossincráticos e detalhistas - distantes, contudo, do risco de desenraizamento. Prospectar é retomar deformando.
Nenhum gênero explorou tanto a ideia de repetição. Mas não são todos os álbuns que põem a nu o ensinamento fundamental do jazz para a música: que a única coisa que se repete é a diferença. Que retomadas, como estas, da tradição devem ser radicalmente recicladas pelo presente da técnica e da cultura. Nardis é acrescida de um prelúdio cavernoso e dançante, típico da Marmota, e tem sua textura completamente revitalizada. If I should lose you transita pela vitalidade de versões como a de Hank Mobley e a concentração erudita daquelas à Nina Simone. As trocas de andamento são sustentadas pela percussão eclética de Bruno Braga, que agencia caracteres de latinidade e africanismos sem perder o swing.
Típica desse frenético trânsito rítmico é Ogaden. A arte quase arquitetônica de criação climática, que aponta para a maturidade da Marmota, atinge, aqui, o paroxismo: diferentes paisagens são engendradas; a respiração da música diferencia, aos poucos, seu próprio batimento (no que se percebe a influência de Miles). Prospectar, aqui, é estabelecer essa arena de climas moventes, trabalhar o chão arenoso para o improviso. A faixa começa “meio alienígenas no deserto”, na descrição de Moser. Deserto extra-terrestre que é assaltado pela psicodelia à moda Pink Floyd. Nos minutos subsequentes, a percussão enfatiza as colorações ibéricas do flamenco, problematizadas no timbre metálico da guitarra (com gosto de Dream Theater). O deslizamento final leva a uma calmaria dissonante e inquieta, que encerra o álbum quase requisitando um novo começo.
É na joia do disco, Maraca #7, de Bittencourt, que o sotaque brasileiro se torna mais incisivo, com significantes pinceladas de Egberto Gismonti. A levada na bateria é uma citação de Nenê, percussionista de Hermeto. O piano deforma as melodias tropicais como que num exercício de expressionismo abstrato musical. Aparece um Brasil em sua melhor forma: a oswaldiana, antropofágica, que consome o que não é nosso para regurgitar o universal depois de processado pelo aparelho digestório nacional. Mas esse processamento não se faz por projeção, em pautas definidas. Se faz por prospecção: a música é produzida num jogo, em respostas e reciprocidades, numa risada.
Havoc inicia com pose de sonata clássica, e apresenta o tema principal no piano. Mas só se caracteriza totalmente quando aparece a interação desta camada virtuose com o motivo circular que a guitarra executa em ostinato, emergindo aos poucos do plano de fundo. O solo de guitarra mobiliza todos os instrumentos em diversas rupturas de temporalidade. A pulsão é amortecida no solo de baixo, oásis de repouso num deserto de hiperatividade, que lembra a expressividade quase ritualística de um Charlie Haden, preparando as variações subsequentes sobre o tema final. O encerramento novamente exige fina sincronia dos instrumentistas.
Distant layers é uma balada que explora as camadas mais profundas da imagem sonora. À maneira da guitarra que irrompe do fundo para a figura, o Prospecto torna-se uma dobra. Prospectar é dobrar-se sobre si mesmo, fundando, em reviravoltas, camadas cada vez mais complexas. A influência de exploradores das mais sofisticadas tessituras musicais no jazz contemporâneo, como Mark Guiliana, é clara por aqui, nessas dobras reincidentes.
Dobras que se expressam também no projeto gráfico: o envelope desdobra-se em pôster do artista gráfico André Bergamin, cuja estética hiperpovoada é dobrada e redobrada no encarte que, por sua vez, dobra (ou prospecta) a própria musicalidade desértica e arenosa da Marmota.
Caso inédito de álbum cuja música funda um verbo: prospectar. Já se disse que o desafio da crítica musical é a questão do adjetivo. E também, depois, que a do advérbio. Nenhum problema aqui: a música se torna prospectiva, prospectando.